Sadness
Charlotte merece ter alguém que seja forte por ela. É um papel que começo a interpretar sem nem questionar. Incorporo o manto do cavaleiro branco de bom grado. Se alguém precisa de um campeão montado num corcel, é ela.
Quando o táxi para no condomínio, pulo fora, deixando um Simon chocado para trás. Ele está prestes a me seguir em direção ao prédio, quando coloco a mão em seu ombro e detenho seus movimentos.
Ele parece em estado de choque. Velho. Um lampejo de pena toma conta de mim.
– Você pode ficar no taxi e esperar pela ambulância? – pergunto. Não digo que ele vai ser um ponto fraco se me seguir até as escadas. – Quando chegarem aqui, diga que o apartamento fica no quarto andar, na segunda esquina. Vou deixar a porta aberta para eles.
Simon hesita e eu interpreto isso como submissão. Ele permanece sentado.
– Não deixe o táxi ir embora sem você, ok? Vou ficar com Charlotte e te ligo quando chegarmos ao hospital. – sinto como se estivesse falando com um idoso. Mas ele é um tamanho peixe fora d’água aqui que estou com medo de que ele seja um alvo. Até mesmo o motorista do táxi parece nervoso, e ouço o barulho das portas de carro se trancando assim que me afasto.
Estou quase no bloco quando Simon baixa a janela e grita:
– Você não pode ir até lá sozinha.
Não tenho tempo para acalmar seus temores. Ainda estou com Charlotte no telefone, seu pranto substituído por um silêncio mais ameaçador. Não há dúvida de que, no momento, ela é minha prioridade número 1.
– Sim, eu posso.
Vou indo até um átrio sujo e subo uma escadaria. Meus saltos batem no concreto duro. Embora eu considere tirar os sapatos para acelerar a subida, a ideia de vidro quebrado me faz repensar. Em vez disso, coloco o peso nas pontas dos pés, evitando pisar sobre os saltos. Puxo a bainha do vestido para baixo, a fim de parecer um pouco decente.
Está bastante silencioso quando chego ao quarto andar. Sigo caminhando até o apartamento de Daisy, sem nunca parar de falar baixinho ao telefone.
– Estou quase aí, querida. Só mais um minuto, está bem? Continue respirando. – a essa altura, Charlotte não consegue mais falar. Os únicos sons que ouço são soluços suaves e um suspiro ocasional. Quero abraçá-la e dizer que está tudo bem. Mas não está, não está há muito tempo. Fracassamos com ela, todos nós.
Fizemos essa criança de 8 anos crescer tão depressa que ela mal teve tempo de tomar fôlego.
– Estou do lado de fora, você pode abrir? – inspiro fundo e me preparo para o que está lá dentro. Há barulho, seguido pelo rangido de uma dobradiça reclamona, e a porta se abre. Charlotte se joga em mim, e sua cabeça bate no meu peito, tento não ofegar. Seu choro alto corta o silêncio, e preciso de um minuto para perceber que ela está realmente tentando dizer alguma coisa.
Entoar, na verdade. Tenho de me curvar para distinguir as palavras.
– Me desculpa, me desculpa, me desculpa. – como uma ladainha, ela repete e repete.
Acaricio o cabelo dela, murmurando palavras suaves numa tentativa de acalmá-la.
– Está tudo bem, a culpa não é sua.
– É sim, é tudo minha culpa. Eu menti, eu disse que ele não estava aqui. Eu falei pra eles que ela não estava usando drogas. Por favor, não me odeie.
– Eu não te odeio, eu te amo. – eu a abraço apertado, tentando mostrar o quanto estou sendo sincera. Os gritos de Charlotte se tornam mais altos, quase histéricos. Enterro o rosto em seu cabelo. – Preciso entrar e ver como está sua mãe. Você quer esperar aqui fora?
– Não me deixe. – suas mãos pequenas se tornam punhos cerrados no meu peito, agarrando meu vestido como se ela estivesse tentando me segurar. Pela primeira vez hesito, dividida entre uma mulher inconsciente e sua filha abalada.
Quando veja a vizinha de Daisy enfiando a cara de lua para fora da porta quase
quero sorrir.
– Ei, você pode vir e ajudar? – olho diretamente para ela.
Um lampejo de reconhecimento perpassa seu rosto. Ela deve se lembrar da nossa conversa há alguns meses. Da última vez que encontrei Daisy inconsciente no apartamento.
– O que foi? – ela se apoia no batente da porta e cruza os braços, olhando para Charlotte. – Aquele imbecil machucou ela de novo?
– Não sei o que aconteceu. Só que a Daisy está inconsciente lá dentro. Você pode cuidar da Charlotte enquanto eu entro? – quando digo o nome dela, Charlotte se agarra em mim com mais força. Tenho que soltar suas mãos dedo por dedo.
Afasto-me e ela começa a tremer, todo o seu corpo sacode com estremecimentos que cortam meu coração.
– Não deixe ela sozinha. Eu entro e olho. Se esse idiota estiver lá dentro vou enfiar a faca nele, porra.
Não sei qual é a dessa mulher, mas acho que eu poderia amá-la. Ela é feroz, mas se resolve te dar cobertura, ela vale ouro. Ela não espera uma resposta, apenas passa por nós e entra no apartamento de Daisy. A porta bate atrás dela e Charlotte me agarra de novo, enterrando o rosto no meu ombro, como se estivesse evitando olhar para dentro.
Ficamos na varanda, agarradas uma à outra, e ouço o lamento fraco de sirenes à distância. Estão se aproximando cada vez mais do condomínio. Nos momentos seguintes, luzes azuis brilhantes piscam e uma ambulância vem se aproximando depressa do edifício, ladeada por dois carros da polícia. Não estou surpresa ao ver a polícia aqui; este lugar é muito perigoso para os paramédicos virem sem reforços. Só os tolos como eu fariam esse tipo de erro de julgamento.
***
– A senhora pode me dizer o que aconteceu? – um policial aparece na minha frente. Ele é um homem mais velho, talvez com quarenta e poucos anos, com um daqueles rostos que fazem a gente querer revelar todos os segredos. Aberto e honesto.
Abraço Charlotte um pouco mais firme.
– Ela encontrou a mãe inconsciente no chão. Quando tentou acordá-la não teve resposta. Foi aí que ela me ligou.
– Ela estava sozinha? – seu rosto diz tudo. A situação é terrível.
– Estava. São apenas elas duas. Faz pouco tempo que a menina voltou. Antes estava aos cuidados da assistência social.
– Então só está a mãe lá dentro?
– Não. Uma das vizinhas entrou para ver como ela estava. Ela é do 410. – aponto para a porta aberta e ele balança a cabeça. É interessante a forma como ele absorve todas as informações. Tenho a impressão de que ele está percebendo muito mais do que deixa transparecer. Talvez esteja ponderando os riscos, avaliando quais devem ser os próximos passos. Eu só gostaria que ele se apressasse e conseguisse alguma ajuda para Daisy.
– Qualquer outra coisa que eu deva saber?
– Ela tem um namorado. Ele é traficante. – não consigo me fazer dizer o nome dele. – Ele foi afastado por um tempo, mas ouvi que ele voltou. – Charlotte enterra o rosto no meu peito. – Não sei se ele está envolvido, mas ele não está aqui no momento.
Nem preciso baixar a voz. Tentar proteger Charlotte da crueldade da vida é inútil. Ela já viu de tudo, já ouviu de tudo. Foi derrubada pela realidade antes que aprendesse a ficar em pé.
Quando os paramédicos recebem o ok, entram no apartamento de Daisy, carregando malas e equipamentos. Conversam com os policiais que os acompanham ao interior. Fico imediatamente impressionada com a falta de ação. Não há gritos, não há ninguém entrando e saindo. Tanta diferença de quando encontrei Daisy espancada em sua cama. Daquela vez havia muito barulho. Tentativas barulhentas de estabilizar sua condição antes de passarem
correndo com ela para a ambulância e seguirem para o hospital.
Dessa vez, porém, o silêncio parece um mau presságio. Quase insuportável. Meu coração despenca quando a vizinha de Daisy finalmente sai do apartamento. Seus lábios estão curvados para baixo e seus olhos quase não encontram os meus. Quando ela finalmente me olha, balança a cabeça lentamente e tenho certeza do que eu suspeitava o tempo todo.
Daisy se foi.
É por isso que eles não estão correndo ou gritando. É por isso que não há nenhuma volta frenética para a ambulância como um paramédico cobrindo a boca dela com uma máscara de oxigênio. Não há necessidade de pressa quando ela já nos deixou. O tempo pode correr um pouco mais devagar para os mortos.
Instintivamente, puxo Charlotte para mais perto. Em seguida, sai o policial de rosto gentil, seu quepe entre as mãos enluvadas. Há um tom pálido de seu rosto quando ele para diante de nós.
– Posso dar uma palavrinha?
Faço um gesto impotente para Charlotte e a expressão dele suaviza. Parece ser o tipo de cara que tem os próprios filhos. Que sabe exatamente por que estou hesitante.
– Talvez Dee possa cuidar da pequena?
Devo parecer confusa, porque ele aponta para a vizinha de Daisy. Levo um momento para perceber que ela deve ter um nome. Dee. Tão comum e normal para alguém numa confusão tão grande. A banalidade de seu nome de alguma forma faz com que tudo pareça pior, como se o mundo estivesse fora de prumo.
Tento afastar a sensação quando passo Charlotte para ela. Amenina agora mal tem noção do que está acontecendo, sua consciência desligou como um computador superaquecido.
O policial espera pacientemente. Quando fico livre, ele coloca a mão no meu ombro, me levando para fora do alcance da voz de Charlotte. Um impulso inesperado toma conta de mim, a necessidade de me lançar nos braços dele, de deixar que ele me conforte do jeito que cuidei de Charlotte. Pode ser a aura paternal que emana dele, ou posso estar ficando louca. No momento, é meio a meio.
– Você é parente?
– Da Daisy ? Não, somos amigas. Ou, pelo menos éramos. – enrugo a testa, lembrando das últimas semanas. – Trabalho na clínica de dependentes químicos onde ela está fazendo tratamento.
Nada mais, diz a pequena voz na minha cabeça. Sinto-me sufocar.
– Você sabe de algum parente? Qualquer um que viva nas proximidades? – ele ainda fala manso. Não julga.
– Ela não fala com a mãe. Não a vê há anos... – paro, tentando pensar. – Não me lembro dela mencionar nenhum outro parente. – não estou incluindo Darren. Ele não é parente, é um parasita.
– Nesse caso, vou precisar da sua ajuda. – ele olha para Charlotte. Dee a está levando para o apartamento ao lado. Seu braço está envolto em Charlotte de forma protetora. – Sinto muito ter que dizer que a RCP não funcionou. Tentaram reanimar sua amiga durante os últimos dez minutos, mas não há nenhum sinal de vida.
– Você quer dizer que ela está morta? – mesmo que eu esteja esperando por isso, ainda fico surpresa. Só resta o pensamento de alguém maior que a vida simplesmente desaparecendo. Ela parecia invencível. Toda vez que a vida dava uma rasteira, ela conseguia se levantar melhor do que nunca, como uma fênix toda errada. – Tem certeza?
– Ela está assistólica. – ele diz como se devesse significar alguma coisa, e significa. Memórias de nove anos atrás me assaltam. Outra noite, outra morte. – Os paramédicos a declararam morta há alguns minutos. – ele esfrega meu braço e a sensação é vagamente reconfortante.
– Como... como ela...? – minha voz some. Não consigo nem dizer a palavra. É como se o fato de eu dizer tornasse tudo real.
Como diabos é que Charlotte vai superar isso?
– Existem todos os sintomas de uma overdose de heroína. Não podemos confirmar até a autópsia, mas não parece ter havido violência.
Heroína? Que maneira horrível de se morrer. Horror e nojo se despejam sobre mim, tingidos com um toque de raiva. Porque mesmo que Darren não a tenha machucado, e mesmo que não tenha sido ele quem aplicou a injeção, ainda é o homem responsável pela morte dela. Não sou uma pessoa vingativa, mas há uma grande parte de mim que pagaria um bom dinheiro para vê-lo ser enforcado pelo que fez.
Não que Daisy também não tenha culpa. Mas com seu corpo deitado no chão de um prédio de apartamentos, mal consigo me fazer pensar nisso. Eles são todas as vítimas aqui. A filha dela acima de tudo.
– Darren Tebbit – digo o nome em voz baixa. – O namorado dela se chama Darren Tebbit. Ele ronda o parquinho aqui perto, passando droga para crianças e adolescentes à tarde. Fique à vontade para cortar o pau dele fora. – vou embora com a fúria fervendo nas minhas veias, porque tenho que ir partir o coração de uma menina.
É quase mais do que posso suportar.
Daisy se foi :(
como será que a Charlotte irá lidar com isso? e a Demi?
esse Darren é um covarde, tadinha da Charlotte.
o que será que irá acontecer com a Daisy?
espero que tenham gostado amores.