Bell Harbor
Flórida, 00:30 A.M
O hotel vista marinha não oferecia nenhuma vista do mar, exceto para as gaivotas que se empoleiravam nos telhados, mas de fato tinha uma piscina, um bar que ficava aberto até as duas da madrugada, e tevê a cabo. Todas estas dependências estavam sendo usadas à uma da manhã, quando Nicholas parou o carro na frente da entrada principal.
O televisor instalado no saguão estava sintonizado na CNN, com o som abafado do bar, onde meia dúzia de pessoas bebiam no balcão e ignoravam a pista de dança. Ele encaminhou-se para uma porta dos fundos e contornou a piscina, onde uma turma de rapazes jogava vôlei na água e mantinha um fluxo contínuo de palavrões amigavelmente masculinos.
O telefone estava tocando quando Nicholas entrou no quarto. Mais por hábito do que necessidade, ele deixou o telefone tocar enquanto trancava a porta duas vezes, checando em seguida, e depois fechava as cortinas. Só então aproximou-se da cama e atendeu o telefone. A voz que vinha de um aparelho celular pertencia a um agente a quem Nicholas conhecia havia anos, e que nos últimos dois dias estivera em Bell Harbor ajudando-o na investigação de Demi Lovato.
— E então? - o outro agente perguntou, ansioso. — Vi você com ela, numa festa lá na praia. Ela vai cooperar?
— Vai, sim - Nicholas respondeu. Apoiando o telefone no ombro, inclinou-se para a frente e girou o botão do ar-condicionado até a temperatura ”forte”, e o odor do ar frio e embolorado atingiu-o em cheio no rosto.
— Pensei que você só iria fazer contato com ela amanhã cedo.
— Mudei de ideia.
—Quando?
— Talvez tenha sido quando ela apareceu por trás de mim e deu-me um chute no traseiro. Não... acho que foi depois disso, quando ela apontou uma Glock de nove milímetros na minha cara.
O amigo de Nicholas deu uma gargalhada.
— Ela pegou você? Está brincando!
— Não, não estou. E se você nutre alguma esperança de continuar sendo meu amigo, nunca mais toque neste assunto.
Apesar do tom mal-humorado, Nicholas não pôde evitar um sorriso ao lembrar-se das notáveis indignidades que lhe foram infligidas naquela noite por uma jovem, ingenua e inexperiente policial que pesava menos de sessenta quilos.
— Ouvi três tiros esta noite. Com todas as medalhas que ela ganhou na academia de polícia, por sua perícia em tiro ao alvo, fico surpreso que não o tenha acertado pelo menos de raspão.
— Ela não estava atirando em mim. Ela me rendeu, imaginando que eu fosse um assaltante armado numa praia cheia de gente, e sabia que seus companheiros estavam a menos de quinhentos metros de distância. Em vez de arriscar-se a me desarmar sozinha, que em última análise poria em risco a segurança de pessoas inocentes, ela atirou para o ar e deu um aviso pedindo ajuda. Foi uma boa saída, da parte dela. Agiu com prudência, eficácia e imaginação.
Ele fez uma pausa para arrumar os travesseiros na cabeceira e esticou-se na cama, antes de prosseguir:
— Quando os reforços chegaram, momentos depois, ela já havia descoberto minha verdadeira identidade e entendido tudo o que eu queria que fizesse. Em questão de minutos, ela assumiu o papel que precisava desempenhar, e levou-o a cabo. Considerando-se tudo - finalizou. — Ela demonstrou muita habilidade e uma notável capacidade de adaptação.
— Então parece que é perfeita para nosso serviço. -Recostando nos travesseiros, Nicholas fechou os olhos e combateu suas próprias apreensões.
— Eu não iria tão longe.
— Ainda está preocupado com a possibilidade de que, assim que estiver no palácio de Lovato em Palm Beach, cercada por toda sua fortuna e pelos seus amigos ricos, ela ficará tentada a ”mudar de time”?
— Depois de conversar com ela esta noite, eu diria que isso é extremamente improvável.
— Então qual é o problema? Você mesmo está admitindo que ela é inteligente, adaptável, e também mais rápida no gatilho do que você. - Quando Nicholas não mordeu aquela isca, o amigo acrescentou, brincalhão: — Não creio que o fato de ter também um belo par de pernas e um rosto bonito possa depor contra ela. - Diante do silêncio significativo no outro lado da linha, o humor desapareceu da voz dele. — Nicholas, nós já nos certificamos de que ela não é corrupta, você não acredita que ela possa ser corruptível, e agora também descobriu que é esperta. O que diabos está incomodando-o tanto?
— O que me incomoda é que ela é do tipo ”escoteira”. É mais do que óbvio que se tornou policial porque deseja ajudar as pessoas. Ela tira pipas presas nas árvores e procura cachorros vira-latas nas ruas; depois, em vez de aproveitar o tempo de folga, continua de plantão para que possa confortar uma senhora hispânica cuja casa está pegando fogo. Quando era criança, tendo de escolher entre uma dieta exclusiva de manteiga de amendoim e pedir dinheiro para o pai, ela preferiu a manteiga de amendoim. Trata-se de uma idealista de corpo e alma, e é isso que está me preocupando.
— Desculpe?
— Você sabe o que é um idealista?
— Sim, mas gostaria de ouvir a sua definição, porque até dez segundos atrás eu pensava que o idealismo fosse uma virtude rara.
— Talvez seja, mas numa situação como esta não representa uma vantagem para mim. Os idealistas têm o hábito peculiar de decidir por si mesmos o que é certo e o que é errado; só dão ouvidos às suas próprias vozes e, depois, agem movidos pelos seus próprios critérios. A não ser que o idealismo seja moderado, não aceita nenhuma autoridade exceto a sua própria. Em qualquer situação os idealistas são imprevisíveis como balas perdidas, mas numa operação delicada como esta, uma idealista ingenua como Demi Lovato poderia se transformar numa ogiva nuclear.
— Bem, depois deste passeio esclarecedor pela filosofia, posso deduzir que o seu medo é que ela não permita que você lhe diga o que pensar.
— Exatamente.
Sara despediu-se de Jonathan assim que ele a deixou em casa. Depois, foi direto tomar um banho quente, tentando afastar a sensação de frio que os insultos de Jess lhe provocaram. Por algum motivo, as batalhas verbais entre eles haviam começado logo que se conheceram, e ela adquirira o hábito de defender-se com contra-ataques retóricos. Mas naquela noite Jess fora longe demais. Tornara-se cruel, ofensivo. E o que era pior, havia uma parcela de verdade nas palavras dele, o que a deixara ainda mais magoada.
Estava enxugando os cabelos quando a campainha tocou. Intrigada e cautelosa, enfiou-se num roupão comprido, foi até a sala e espiou pela cortina antes de abrir a porta. Uma viatura da polícia de Bell Harbor estava estacionada diante da casa. Com um leve sorriso, imaginou que Pete tivesse decidido continuar a festa ali e que os outros chegariam em seguida.
Abriu a porta da frente e seu sorriso desapareceu abruptamente. Jess Smith estava parado na varanda, os cabelos despenteados como se tivesse passado os dedos por entre eles ou, mais provavelmente, alguma ávida garota os afagara depois que Sara saíra da praia. A julgar pela sua expressão soturna, no entanto, as atenções da dama deviam ter sido insatisfatórias.
Injetando o máximo de frieza possível em sua voz, Sara falou, com desprezo:
— A não ser que tenha vindo aqui cumprindo alguma missão oficial da polícia, vá embora agora mesmo e não torne a aparecer. Em consideração a Demi, serei educada com você sempre que estiverem juntos, mas se ela não estiver com você, fique bem longe de mim!
Queria falar mais, ou dizer coisas piores, mas subitamente sentiu vontade de chorar, o que a fez sentir-se ridícula e muito mais zangada.
Ele franziu a testa, quando ela terminou o discurso.
— Vim lhe pedir desculpas pelas coisas que eu disse há pouco - falou, parecendo irritado, e não arrependido.
— Tudo bem - Sara retrucou, com frieza. — Já se desculpou. Mas isso não vai me fazer mudar de ideia. - Começou a fechar a porta, porem Jess bloqueou-a com o pé. — O que foi, agora? - ela inquiriu.
— Acabei de perceber que não vim aqui para me desculpar.
Antes que ela pudesse reagir, Jess segurou-a pelos ombros e puxou-a para si.
— Tire as mãos de mim... - ela esbravejou.
Mas Jess baixou o rosto e capturou seus lábios num beijo duro, fácil de resistir... até que se suavizou. O choque, a raiva e uma estranha pontada de prazer fizeram com que seu pulso se acelerasse, mas ela permaneceu absolutamente imóvel, recusando-se a lhe dar a satisfação de lutar ou cooperar.
Assim que ele a soltou, Sara deu um passo para trás, com a mão direita agarrando a maçaneta da porta.
— Este tipo de ataque é excitante para as vagabundas com quem você costuma sair? - inquiriu e, antes que ele pudesse responder, empurrou a porta com toda força, fechando-a com um estrondo na cara dele.
Paralisada, Sara continuou onde estava até ouvir o motor do carro dele; então, virou-se lentamente e recostou na porta, exaurida. Com os olhos secos, fitou os acessórios cuidadosamente escolhidos que comprara para sua sala - um lindo vaso de porcelana, uma banqueta antiga, uma mesinha estilo Luís XIV. Eram objetos queridos, da melhor qualidade - belos símbolos da vida maravilhosa que planejava para si mesma, e para os filhos que teria um dia.
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