3 de abril de 2014
Quatro dias antes do adeus
De pé na varanda dos meus pais, eu observava a chuva forte que caía no balanço feito de pneu que eu e meu pai tínhamos feito para Charlie. Ele ia e voltava, batendo contra a moldura de madeira.
— Como você está? — perguntou meu pai, aproximando-se de mim. Estava acompanhado de Zeus, que logo encontrou um canto seco para se deitar. Virei-me e olhei para ele, um rosto muito parecido com o meu, apenas mais velho e mais sábio.
Não respondi e continuei observando a chuva.
— Sua mãe comentou que você não está conseguindo escrever o obituário — continuou ele. — Posso ajudar.
— Não quero sua ajuda — resmunguei, minhas mãos se fechando, as unhas cravadas nas palmas. Eu odiava sentir a raiva aumentar com o passar dos dias. Odiava culpar pessoas próximas pelo acidente. Odiava aquela pessoa fria que eu estava me tornando a cada momento. — Não preciso de ninguém.
— Filho... — ele suspirou, colocando a mão no meu ombro.
— Só quero ficar sozinho — respondi, me afastando.
Ele abaixou a cabeça e passou a mão pela nuca.
— Tudo bem. Estarei lá dentro com sua mãe — ele se afastou e abriu a porta de tela. — Mas, Joseph, só porque você quer ficar sozinho, não significa que esteja sozinho. Lembre-se disso. Sempre estaremos aqui quando você precisar.
Ouvi a porta se fechar e respirei fundo.
Sempre estaremos aqui quando você precisar.
A verdade era que o “sempre” não durava para sempre.
Coloquei a mão no bolso e peguei o pedaço de papel que eu estava encarando há três horas. Eu tinha terminado o obituário de Ashley de manhã, mas o de Charlie ainda estava em branco, apenas com o nome dele escrito.
Como eu poderia fazer aquilo? Como eu escreveria a história de sua vida, quando ele nem teve a chance de viver?
A chuva começou a cair no papel, e as lágrimas, dos meus olhos. Pisquei algumas vezes antes de enfiá-lo de novo no bolso.
Eu não iria chorar.
As lágrimas que se fodam.
Meus pés desceram os degraus da varanda, e em segundos eu estava encharcado da cabeça aos pés, me tornando parte da tempestade que caía.
Precisava de ar. Precisava de tempo. Precisava escapar.
Precisava correr.
Comecei a correr descalço, sem pensar, sem ter uma direção.
Zeus veio correndo atrás de mim.
— Volta pra casa, Zeus! — gritei para o cachorro, que já estava tão molhado quanto eu. — Vai embora! — berrei, querendo ficar sozinho. Corri mais rápido, mas ele me acompanhou. Fiz tanto esforço que meu peito parecia queimar, e respirar se tornou essencial. Corri até minhas pernas não aguentarem mais e desabei no chão. Os raios caíam acima de nós, riscando o céu como se fossem cicatrizes, e comecei a soluçar de maneira inconsolável.
Eu queria ficar só, mas Zeus estava bem ali. Ele acompanhou minha loucura e ficou do meu lado quando cheguei no fundo do poço. Ele não iria me abandonar. Chegou perto de mim e lambeu meu rosto, demonstrando seu amor, me dando seu apoio quando eu mais precisava. — Tudo bem — suspirei, as lágrimas caindo enquanto eu o abraçava. Ele uivou, como se também lamentasse. — Tudo bem — repeti, beijando sua cabeça e afagando-o.
Tudo bem.
***
Correr era algo que eu fazia muito bem.
Gostava de sentir meus pés no chão quando corria.
Gostava de sentir a pele rasgando, de vê-la sangrar com o impacto dos meus pés no concreto da rua.
Gostava de me lembrar dos meus pecados através das dores do meu corpo.
Eu adorava me machucar.
Mas só a mim. Adorava me ferir. Ninguém mais precisava sofrer. Fiquei longe das pessoas para não machucar ninguém.
Machuquei Demi, mas não foi de propósito.
Sinto muito.
Como eu poderia me desculpar? Como poderia consertar o estrago que fiz? Como apenas um beijo pôde me fazer recordar?
Ela caiu por minha causa. Poderia ter quebrado um osso. Poderia ter batido a cabeça. Poderia ter morrido...
Morte.
Ashley.
Charlie.
Lamento tanto.
Naquela noite, corri ainda mais. Corri pelo bosque. Rápido. Mais rápido. Com força. Mais força.
Vai, Joseph. Corra.
Meu pé sangrou. Meu coração chorava, batendo no peito, confundindo minha cabeça, envenenando meus pensamentos, desenterrando as lembranças. Ela podia ter morrido, e a culpa seria minha. Eu seria o responsável.
Charlie.
Ashley.
Não.
Tentei não pensar neles.
Senti a dor atravessando meu peito. Era uma dor boa. Seja bem-vinda. Eu a merecia. Mais ninguém, só eu.
Sinto muito, Demi.
Meu pé doía. Meu coração doía. Tudo doía.
A dor era assustadora, perigosa, real, boa. Eu me sentia muito bem, de uma forma terrível. Céus, como eu adorava aquilo. Muito.
Porra, eu adorava a dor.
A noite foi ficando mais escura.
Sentei no galpão, pensando num jeito de pedir desculpas sem que ela quisesse ser minha amiga. Pessoas como ela não precisavam de pessoas como eu para complicar suas vidas. Pessoas como eu não mereciam amigos.
Mas o beijo dela...
O beijo dela me fez recordar. Por um momento, a recordação foi boa, mas eu estraguei tudo, porque é isso que eu faço. Eu não conseguia tirar da cabeça a imagem de Demi caindo. Qual era o meu problema?
Talvez eu sempre acabasse machucando as pessoas.
Talvez por isso eu tenha perdido tudo o que tinha.
Mas eu só queria que ela parasse de falar comigo, só queria evitar que ela se machucasse. Não deveria ter dado aquele beijo nela. Mas eu queria beijá-la. Eu precisava do beijo. Eu fui egoísta.
Não saí do galpão até a lua estar bem alta. Quando saí, ouvi um barulho... alguém estava gargalhando?
Vinha do bosque.
Eu não devia ter me importado. Devia cuidar da minha vida. Mas, em vez disso, segui o som e encontrei Demi cambaleando entre as árvores e rindo sozinha, segurando uma garrafa de tequila.
Ela era bonita. Na verdade, quis dizer que ela era linda. O tipo de beleza que não precisava de muito esforço, que não era difícil de manter. O cabelo loiro caía em ondas, e ela usava um vestido amarelo que parecia ter sido feito somente para o corpo dela. Eu odiava achar que ela era bonita, porque a minha Ashley tinha aquele mesmo tipo de beleza.
Elizabeth dançava, tropeçando pelo bosque. Um valsa bêbada.
— O que está fazendo? — perguntei, chamando sua atenção.
Ela dançou até mim, na ponta dos pés, e colocou a mão no meu peito.
— Olá, olhos sombrios.
— Olá, olhos castanhos. Ela riu novamente, com desdém. Estava completamente bêbada.
— Olhos castanhos. Gostei disso — ela encostou o dedo no meu nariz. — Você tem algum senso de humor? Você é sempre tão sério, mas aposto que pode ser divertido. Diga algo engraçado.
— Algo engraçado.
Ela gargalhou bem alto. Era quase irritante. Mas não, não era nada irritante.
— Gosto de você. Nem sei por que, seu cabeça-dura. Quando você me beijou, eu me lembrei do meu marido. O que é ridículo, porque você não se parece nada com ele. Zachary era tão carinhoso. Ele sempre cuidou de mim, me abraçava e me amava. E quando me beijava, era porque ele queria me beijar. Quando parava de me beijar, era só pra tomar fôlego e continuar. Ele queria que eu ficasse grudada nele. Mas você, olhos sombrios... quando se afastou, pareceu ter nojo de mim. Você me fez ter vontade chorar. Porque você é cruel — ela tropeçou de novo, quase caiu para trás, e segurei-a pela cintura. — Hum, pelo menos dessa vez você evitou meu tombo — ela riu.
Eu me senti mal quando vi o machucado e o corte em seu rosto, provocados pela queda.
— Você está bêbada.
— Não. Estou feliz. Não dá pra perceber que estou feliz? Estou demonstrando todos os sinais de felicidade. Estou rindo, gargalhando, bebendo e dançando. É isso que pessoas felizes fazem, Joseph— retrucou ela, afundando o dedo no meu peito. — Pessoas felizes dançam.
— É mesmo?
— Sim. Eu não esperava que você entendesse, mas vou tentar explicar — disse, a fala engrolada. Ela fez uma pausa, se afastou, tomou um gole da tequila e começou a dançar novamente. — Quando você está bêbado e dançando, nada mais importa. Você fica rodando, rodando, rodando, e o ar fica mais leve, a tristeza diminui e você consegue esquecer um pouco seus sentimentos.
— E o que acontece quando você para?
— Ah, veja bem, só tem um pequeno problema quando a gente dança. Quando você para de dançar... — os pés dela pararam, e ela soltou a garrafa, que se espatifou no chão. — Tudo desmorona.
— Você não está tão feliz quanto diz.
— É só porque parei de dançar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, e ela começou a se abaixar para pegar os cacos de vidro. Agachei, tentando impedi-la.
— Eu pego.
— Seus pés estão sangrando — comentou ela. — Você pisou na garrafa?
Olhei para baixo, para meus pés machucados e cortados por causa da corrida.
— Não.
— Bem, então, infelizmente, você tem pés muito feios — eu quase ri. Ela estreitou os olhos. — Não estou me sentindo bem, olhos sombrios.
— Bom, você bebeu tequila suficiente para embebedar uma pequena multidão. Vamos lá, vou pegar água — ela assentiu antes de vomitar nos meus pés. — Ou então pode vomitar em mim, você que sabe.
Ela riu ao limpar a boca com as costas da mão.
— Acho que é o seu carma, porque você foi muito babaca. Agora estamos quites.
Parecia justo, afinal.
Eu a levei para minha casa após o incidente do vômito. Depois de lavar meus pés com a água mais quente que a raça humana poderia suportar, encontrei-a sentada no sofá da sala, observando tudo. Seus olhos estavam pesados, embriagados.
— Sua casa é chata. E feia. E escura.
— Que bom que você gostou da minha decoração.
— Posso emprestar meu cortador de grama para você arrumar seu jardim — ofereceu ela. — A não ser que você prefira morar no castelo da Fera antes de conhecer a Bela.
— Não dou a mínima para o jardim.
— Por quê?
— Porque, diferente de certas pessoas, eu estou pouco me importando com o que os vizinhos pensam de mim.
— Isso significa que você se importa de alguma forma. O que você quer dizer é que definitivamente não se importa com o que eles pensam.
— Foi exatamente o que eu disse.
Ela continuou rindo.
— Não foi, não.
Meu Deus, que irritante. E linda.
— Bem, eu definitivamente não me importo com o que as pessoas pensam de mim.
Ela bufou.
— Mentiroso.
— Não é mentira.
— É, sim — ela mordeu o lábio inferior. — Todo mundo se preocupa com o que os outros pensam. Todos se importam com a opinião dos outros. É por isso que eu ainda não consegui falar pra minha melhor amiga que acho meu vizinho muito atraente, apesar de ele ser um idiota. E viúvas não deveriam sentir isso por ninguém, nunca mais. Temos que ficar tristes pelo resto da vida. Mas não tristes demais, porque a tristeza faz as pessoas à nossa volta se sentirem desconfortáveis. Então, beijar uma pessoa e ficar excitada, sentir aquele frio na barriga, é algo que não pode acontecer... Isso é um problema. As pessoas julgam. Não quero ser julgada, porque me importo com o que pensam.
Eu me aproximei dela.
— Cara, foda-se. Se você acha o Sr. Jenson gostoso, então que seja. Sei que ele deve ter 100 anos, mas já o vi fazendo ioga no jardim de casa. Eu entendo sua atração. Até eu já fiquei excitado com o cara.
Ela caiu na risada.
— Não é exatamente sobre esse vizinho que estou falando.
Assenti. Eu sabia.
Ela cruzou as pernas e se sentou, ereta.
— Você tem vinho?
— Pareço o tipo que bebe vinho?
— Não — ela balançou a cabeça. — Você parece o tipo que bebe cerveja.
— Exatamente.
— Tá. Me dá a cerveja, por favor.
Saí da sala e voltei com um copo de água.
— Aqui. Beba.
— Quantos anos você tem?
— Trinta e dois, e você?
— Vinte e oito. Quantos anos ele tinha quando...
— Oito — respondi friamente e vi seu rosto assumir uma expressão triste.
— Não é justo. A vida não é justa.
— Ninguém nunca disse que era.
— Sim... mas sempre acreditamos que ela é — Demi continuou olhando para mim — Às vezes, eu escuto você, sabia? Os seus gritos à noite.
— Às vezes, eu escuto você chorar.
— Posso contar um segredo?
— Pode.
— Todos na cidade esperam que eu seja a mesma pessoa que eu era antes de Zachary morrer. Mas eu não sei mais ser aquela pessoa. A morte muda as coisas.
— Muda tudo.
— Desculpe por ter chamado você de monstro.
— Tudo bem.
— Como assim, tudo bem?
— Porque a morte me mudou, me transformou num monstro.
Demi me puxou para perto de si, fazendo com que eu me ajoelhasse na sua frente. Passou os dedos pelo meu cabelo e olhou bem dentro dos meus olhos.
— Você provavelmente vai me tratar mal de novo amanhã, não vai?
— Vou.
— Eu sabia.
— Mas não vai ser de verdade.
— Foi o que eu pensei — ela passou a ponta do dedo pelo meu rosto. — Você é bonito, um belo monstro de coração partido.
Toquei o ferimento em seu rosto.
— Dói?
— Já senti dores muito piores.
— Sinto muito, Demetria.
— Meus amigos me chamam de Demi, mas você já deixou bem claro que não somos amigos.
— Não sei mais como ser amigo de alguém — sussurrei.
Ela fechou os olhos e encostou a testa na minha.
— Sou uma amiga muito boa. Se quiser, posso te dar umas dicas.
Ela suspirou e encostou levemente os lábios na minha bochecha.
— Joseph.
— Sim?
— Você me beijou.
— Beijei.
— Por quê?
Passei a mão pela sua nuca e puxei-a para perto, bem devagar.
— Porque você é linda. É uma mulher linda... destruída e linda.
Ela abriu um sorriso, e seu corpo estremeceu.
— Joseph?
— Sim?
— Vou vomitar de novo.
Joseph ficou com a cabeça dentro do vaso por mais de uma hora, e eu fiquei ali, segurando o cabelo dela.
— Beba um pouco de água — falei, entregando o copo que estava na pia.
Ela tomou alguns goles.
— Normalmente sou melhor nesse negócio de bebida.
— Todos nós já passamos por noites desse tipo.
— Só queria esquecer por um tempo. Me livrar de tudo.
— Acredite em mim, sei exatamente como é — sentei-me ao lado dela. — Como está se sentindo?
— Tonta. Boba. Idiota. Desculpe por ter vomitado no seu pé.
Eu ri.
— Acho que é carma.
— O que foi isso, um sorriso? Será que Joseph Jonas acabou de sorrir pra mim?
— Não se acostume — brinquei.
— Droga. Que pena. Foi legal — ela se levantou, e eu fiz o mesmo. — Seu sorriso foi o melhor momento do meu dia.
— E qual foi o pior momento?
— Quando você fez cara feia pra mim — ela ficou me encarando por um instante. — É melhor eu ir. Muito obrigada por ajudar a curar minha ressaca.
— Sinto muito — repeti, com um nó na garganta. — Sinto muito por ter feito você cair mais cedo.
Ela pousou um dedo nos lábios.
— Tudo bem. Já te perdoei.
Ela voltou para casa muito mais sóbria, mas ainda um pouco cambaleante. Esperei que ela entrasse antes de ir para a cama. Quando nós dois chegamos aos nossos quartos, ficamos olhando um para o outro pelas janelas.
— Você sentiu também, não sentiu? — ela suspirou, se referindo ao beijo.
Não respondi. Mas sim.
Eu também senti.
Agora vocês sabem o motivo do Joseph correr descalço
E esses flashbacks? :( E essas confissões dos dois? Que lindooooos
Demi bêbada kkkkkkkkk
Gostaram? Me contem aqui nos comentários
um beijo lindonas <3
respostas aqui
A fera esta sendo domada pela bela kkkk até que enfim!!! Continua... essas lembranças me deixam tão deprimida ...
ResponderExcluirVerdade kkkkkk
ExcluirPostei já o capítulo amor, vai ter muitas lembranças dessas :(
Bjs lindona <3
Estou amando essa história!!!
ResponderExcluirPosta logo!!Parabéns <3
Que bom que está gostando amor, fico muito feliz.
ExcluirJá postei, um beijo <3
Leitora nova 😍😍
ResponderExcluirVou tentar resumir a minhas conclusões sobre a fic até agora:
1- Eu simplesmente amei a Selena louquinha; 2- eu tenho a leve impressão de que Stephen sabia dos problemas no carro do Zachary e que ele queria a morte do amigo pra ficar com a viúva; 3 e ultimo eu estou amando essa aproximação entre Joe e Demi, tou sentindo que ele ja ta começando a ceder.
Bom amei o capitulo, bjs e Fuii ❤💕
Seja bem-vinda amor.
ExcluirSelena é realmente muito doidinha, amando essa personalidade dela hahaha
O Stephen ele vai aprontar muita coisa, e ele sabia sobre o carro ~spoiler~ mais vocês entenderão ao decorrer da história
O Joseph vai cedendo aos poucos, ele e a Demi ainda sofrem pelo o que perderam mais com o passar do tempo eles vão criando uma conexão
Já postei o capítulo amor, um beijo <3