06/05/2016

sussurros na noite: capítulo 18


Desde que nenhuma das duas havia comido, Selena sugeriu que primeiro parassem para almoçar, e Demi concordou. Estava ansiosa para dar a Selena o recado da mãe, mas ao mesmo tempo tinha plena consciência de que, a cada passo que Selena dava na direção da mãe, estaria um passo mais distante de seu pai. 
Uma garçonete encheu os copos com água e entregou-lhes os cardápios com capa de couro. Demi pegou o seu automaticamente e abriu. Olhando a relação de pratos sem prestar atenção, pensou na conversa que teria com a irmã e tentou ser objetiva: a despeito de sua opinião pessoal sobre Patrick, não podia negar que ele fora um pai dedicado a Selena, embora extremamente controlador, e por isso era compreensível que Selena se sentisse leal a ele. Havia sido relativamente seguro e fácil para Selena aceitá-la como irmã e até gostar dela pois, assim fazendo, não fora obrigada a encarar o fato de que seu pai era um mentiroso e um vilão. Mas o mesmo não se aplicava, quando se tratava de Dianna.
Patrick e a mãe tinham levado Selena a acreditar que Dianna era uma pessoa tão repreensível que o juiz decretara uma ordem judicial a fim de proteger Selena da presença dela. Para que Selena aceitasse que tudo isso era uma grande mentira, também teria de aceitar o fato de que seu pai, e a mãe dele, eram dois tremendos mentirosos. 
Demi já sabia que Selena iria achar dolorosamente difícil encarar este fato, e receava que a irmã tentasse fugir da dor da única maneira que podia: ignorando as tentativas de aproximação de Dianna e inventando motivos para não vê-la.
A garçonete voltou para anotar os pedidos, e Demi pediu o prato ”especial”, sem nem mesmo saber o que realmente seria. Assim que a jovem se afastou, Demi decidiu abordar o assunto sobre Dianna, mas Selena tinha outra coisa em mente. 
— O que a bisavó queria falar com você, de manhã? 
— Sobre jóias - Demi respondeu, distraída. — Queria dar-me uma herança de família, que eu recusei. 
Os músculos do rosto de Selena ficaram tensos.
— Por acaso ela também lhe mencionou o testamento? 
Quando Demi assentiu, Selena pousou os dedos nas têmporas e massageou-as, como se estivesse com uma súbita dor de cabeça. 
— Desculpe - disse, em voz baixa. — Sei que ela vai morrer, algum dia. 
Demi esperou num silêncio solidário que a irmã continuasse a falar, e Selena suspirou, baixando as mãos. 
— Eu vi o estojo de veludo sobre a mesa dela, e tive um pressentimento de que faria algo assim. Mas detesto quando ela começa a falar sobre a morte. Talvez eu sinta que, se ficarmos falando sobre isso, vai acontecer. Não sei... - Balançou a cabeça como se quisesse dissipar os pensamentos morbidos, e depois inclinou-se para a frente e cruzou as mãos sobre a mesa. — Vamos falar de coisas agradáveis. 
Era a abertura que Demi precisava.
— Gostaria de conversar sobre a sua mãe? 
— Tudo bem.
— Falei com ela hoje cedo, e contei-lhe tudo sobre você. Disse que você queria ir até lá para conhecê-la.
— E o que ela disse?
Demi fitou-a direto nos olhos e respondeu, num tom suave:
 — Ela chorou. Acho que foi a primeira vez que vi mamãe chorar.
Selena engoliu em seco, como se compreendesse tal impacto emocional. 
— Mas ela falou alguma coisa?
— Sim. Pediu-me para mandar-lhe um beijo. 
O olhar de Selena desviou-se para o copo de água. 
— Foi muita gentileza da parte dela. 
A reação emocional em cadeia que Demi antecipara estava iniciando, e ela espremeu o cérebro em busca da melhor forma de contorná-la. 
— Sei que isso deve ser difícil para você. Sei também que lhe contaram coisas terríveis sobre ela, mas agora estou lhe dizendo que mamãe é uma das pessoas mais doces e bondosas da face da terra. Não há como escapar do fato de que, se eu estou lhe dizendo a verdade, então alguém mentiu para você. Não, não foi ”alguém”. Foram seu pai e sua avó.
— Ele também é seu pai - Selena falou num tom ansioso, como se implorasse a Demi que reconhecesse tal relacionamento antes que ela aceitasse o seu próprio parentesco com Dianna. 
— É claro que sim - Demi afirmou, e decidiu usar o mesmo raciocínio neutro que Nicholas utilizara com ela durante a viagem para Palm Beach, quando formulara uma hipótese sobre o rompimento do casamento de seus pais. Mas, primeiro, fez uma pergunta: — Você era muito chegada à mãe de seu pai? 
— Vovó francês? - Selena hesitou e, com um ar de culpa, balançou a cabeça em negativa. — Eu morria de medo dela. Todo mundo tinha medo dela. Não que fosse uma pessoa má... embora ela fosse má... Mas era também muito fria
Aquele era exatamente o tipo de resposta que Demi esperava ouvir. 
—  Neste caso, vamos culpá-la por tudo o que aconteceu, e por tudo o que lhe disseram - falou, séria. — Afinal, é bem provável que toda a culpa fosse realmente dela. 
Demi contou a Selena a sua versão do dia em que a mãe de Patrick chegou à Flórida sozinha numa limusine, e partiu de volta para San Francisco levando Patrick e Selena. Enquanto a irmã ouvia sua história, Demi podia vê-la recolhendo-se para dentro de si mesma, como se não pudesse suportar a ideia de acreditar que o pai e a avó fossem capazes de tamanha crueldade.
— O que temos de nos lembrar é o seguinte - Demi concluiu num tom deliberadamente otimista: — Na época em que nosso pai concordou em voltar para San Francisco com a mãe e você, tinha apenas vinte e sete anos. Não era o homem que conhecemos hoje. Era jovem, havia crescido em meio ao luxo e, subitamente, viu-se com a carga de uma mulher e duas crianças para sustentar. É bem provável que estivesse se sentindo muito amedrontado. E também é provável que a mãe acabasse por convencê-lo de que sabia o que era melhor para ele. Talvez tenha dito que ele era extremamente necessário em San Francisco, desde que o pai estava tão doente. E, talvez, ele quisesse acreditar nisso. Quem pode saber, realmente?
— Ninguém - Selena falou, após um momento. 
— Há mais um fator que precisa ser acrescentado a esta equação: nossa mãe e nosso pai não tinham absolutamente nada em comum. Ele não a amava. Ela era apenas uma garota do interior, bonita e ingênua, que se apaixonou por um homem ”mais velho”, rico e sofisticado, e engravidou.
 — E ele tentou ”fazer a coisa certa” casando-se com ela - Selena completou.
— Não foi bem assim. Quando mamãe foi para San Francisco a fim de contar a ele que estava grávida, os pais dele estavam presentes. Ficaram tão revoltados e furiosos que, quando ele voltou para casa naquela noite, disseram-lhe para ir embora e levar mamãe consigo. 
Demi sabiamente omitiu a Selena que Patrick havia estado bêbado quando chegou em casa, e que seus pais consideraram uma adolescente grávida e interiorana como o derradeiro e intolerável item da longa lista de atos irresponsáveis. 
Com imensa cautela, Demi abordou o verdadeiro problema, que ainda estava para ser revelado.
— Depois do fim do casamento, eles lhe contaram coisas terríveis sobre nossa mãe, que não eram verdadeiras, e isso foi muito errado da parte deles. No entanto, se você pensar bem, não é realmente de se surpreender. 
— Na verdade, foi vovó francês quem me contou a maioria das coisas ruins.
— Isso também não é de se espantar, baseado no que você acabou de me dizer sobre ela - Demi tentou brincar. 
— Sim, mas papai ouvia tudo, e nunca a contradisse. Demi não estava preparada para tal comentário, porem foi atingida por uma súbita inspiração e aproveitou para oferecer uma explicação perfeita. 
— Na época, ele já estava mais velho e mais sábio, e talvez se sentisse secretamente envergonhado pelo que fizera... ou pelo que permitira que ela o convencesse a fazer. É óbvio que ele adora você, e por isso talvez não quisesse parecer um vilão aos seus olhos. 
Depois de esperar um momento para que Selena assimilasse tudo aquilo, Demi pegou o copo de água e pensou num outro ponto que poderia salientar.
— Não creio que seja muito raro que pais divorciados façam comentários desagradáveis uns sobre os outros para seus filhos. 
— Você tem toda razão! Que tipo de coisas horríveis nossa mãe dizia sobre ele? 
Demi encarou a irmã, com um sorriso irreprimível formando-se nos lábios, o copo esquecido na mão. 
— A nossa mãe - explicou - teve a bolsa roubada por um adolescente, poucos anos atrás. No dia do julgamento do rapaz, ela foi testemunha da defesa e implorou para que o juiz o absolvesse. - Com um risinho, acrescentou: — Estava tão determinada a tirá-lo daquela enrascada que foi absolutamente eloquente!
 Selena sorriu.
— E ele foi absolvido? Demi fez que sim. 
— O juiz disse que, caso o mandasse para a cadeia, se sentiria como se estivesse punindo a ela
—Que bela história!
— Não é tão bela assim. Uma semana depois, o rapaz roubou o carro dela. Achou que mamãe tinha um coração mole, e ela tem mesmo. 

Demi sabia com certeza que tivera sucesso em resolver o dilema de Selena, porque daquele ponto em diante a irmã passou a enchê-la de perguntas sobre Dianna, e não parou nem mesmo durante o passeio pela cidade, nem durante as compras.



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